Por Cássio Faeddo
A economia dos Estados Unidos repousa sobre um paradoxo: a maior potência global é, também, o maior devedor do planeta. Com uma dívida pública superior a US$ 36 trilhões — o equivalente a mais de 130% do seu PIB — os EUA sustentam essa anomalia graças a um fator decisivo: a centralidade do dólar como moeda de reserva internacional.
Essa centralidade permite ao Tesouro americano emitir títulos com alta demanda global, mesmo oferecendo juros reais historicamente baixos.
Mais ainda: permite que a Federal Reserve (Fed) conduza políticas de expansão monetária agressiva (quantitative easing) sem enfrentar os mesmos riscos de inflação descontrolada que outros países. A inflação é, em parte, exportada, pois grande parte da base monetária em dólares circula e é retida no exterior, especialmente por bancos centrais, fundos soberanos e contratos de commodities.
No entanto, esse arranjo, funcional desde Bretton Woods e reforçado após a década de 1970 com o petrodólar, começou a ser desafiado. A criação de mecanismos alternativos como o CIPS (China Interbank Payment System) e os acordos bilaterais de liquidação em moedas nacionais entre China, Rússia, Índia e países do Oriente Médio sinalizam um movimento em direção a uma nova arquitetura financeira internacional.
A moeda dos BRICS
Em 2023, durante a cúpula dos BRICS em Joanesburgo, foi debatida abertamente a criação de uma moeda comum, lastreada em uma cesta de commodities e reservas multilaterais.
A ideia, inspirada parcialmente nos Direitos Especiais de Saque (SDR) do FMI, ganhou tração com a entrada de países como Arábia Saudita, Irã e Egito no bloco. Esses países detêm parte significativa da produção energética global, o que permitiria à nova moeda disputar o papel hoje exercido pelo petrodólar.
Segundo Zoltan Pozsar, ex-estrategista do Credit Suisse, estamos diante do nascimento de um “Bretton Woods III”, onde o lastro não seria mais a confiança no Fed, mas ativos físicos estratégicos — petróleo, grãos, minerais raros.
Para os EUA, isso seria devastador: perder o status de moeda de reserva implicaria encarecer o custo da dívida, limitar o déficit fiscal e repatriar trilhões hoje emitidos sem lastro real.
O peso das exportações brasileiras
Em 2024, o Brasil exportou aproximadamente 337 bilhões de dólares. A China foi o principal destino, com cerca de 95 bilhões, o que representa 28% do total. Em seguida, a União Europeia comprou 48,3 bilhões, correspondendo a 14,3%, enquanto os Estados Unidos receberam 40,9 bilhões em produtos brasileiros, o equivalente a 12% das exportações.
A Índia foi destino de 10 bilhões (3%), a Rússia de 3,5 bilhões (1%) e a África do Sul de 1,4 bilhão (0,4%). Somando os países do BRICS, excluindo o próprio Brasil, as exportações brasileiras alcançaram cerca de 110 bilhões de dólares, o que corresponde a 33% do total exportado no ano.
Ou seja, as vendas para os EUA são importantes, mas não têm a mesma relevância que em outros tempos.
Lula, tarifas e a disputa pela ordem global
Assim, não há qualquer responsabilidade direta de Lula pelas tarifas impostas por Donald Trump contra o Brasil. Essas medidas são expressão clara da política protecionista do trumpismo, que vê no fortalecimento dos BRICS — especialmente diante de um possível novo bloco monetário — uma ameaça à hegemonia econômica dos EUA.
O que pode ser dito, sim, é que a postura de Lula como entusiasta da multipolaridade e da integração Sul-Sul, particularmente por meio do BRICS, incomoda a lógica unipolar defendida por Trump e setores conservadores norte-americanos.
Assim, embora Lula não tenha provocado diretamente a tarifação, sua política externa reafirma um projeto geopolítico que os EUA de Trump tentam sufocar por meio de sanções, tarifas e isolamento econômico.
Portanto, a tarifação não é reação a Lula individualmente, mas ao que ele representa: uma tentativa de autonomia do Sul Global diante do poder norte-americano.
O bolsonarismo como instrumento geopolítico
É nesse tabuleiro que o bolsonarismo surge como peça útil à geopolítica norte-americana. Não se trata apenas de ideologia, mas de funcionalidade.
Jair Bolsonaro, durante seu mandato, alinhou o Brasil de forma inédita à política externa dos EUA, especialmente sob Donald Trump. Entre os efeitos concretos dessa submissão destacam-se:
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O desmonte da integração sul-americana, como o enfraquecimento deliberado do Mercosul e da UNASUL;
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A hostilidade em relação à China, maior parceiro comercial do Brasil, minando tentativas de aproximação com o bloco asiático;
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O desestímulo à adesão plena do Brasil à Nova Rota da Seda e outros fóruns multipolares;
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A politização da política cambial e monetária, com declarações e ações que fragilizaram a estabilidade econômica e facilitaram a fuga de capitais.
A estratégia é clara: manter o Brasil como zona de influência dolarizada, dependente de Washington, impedindo que o país utilize seu peso geoeconômico para viabilizar uma moeda alternativa no Sul Global.
É por isso que o bolsonarismo, mesmo fora do poder formal, continua sendo cultivado por think tanks conservadores dos EUA, pela extrema-direita global e por setores do agronegócio que temem perder os lucros atrelados ao sistema atual.
E nesse contexto, qualquer um serve — Eduardo, Tarcísio, Jair — desde que subserviente aos EUA e refratário aos BRICS.
O Brasil e a nova moeda mundial
Além disso, o Brasil, com sua biodiversidade, água doce, lítio e alimentos, é peça-chave para qualquer moeda lastreada em commodities. Controlar seu alinhamento é vital para os interesses de Washington.
A economia americana está baseada em uma construção artificial: a confiança global no dólar como unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor.
Mas essa construção é sustentada por poucos tijolos — e um deles pode ser abalado por uma moeda que retire parte do lastro do dólar, ainda que em transações entre pares. Parece pouco, mas é muito dinheiro.
Se os BRICS forem capazes de lançar uma moeda respaldada por ativos reais, e se países como o Brasil deixarem de agir como protetores informais do dólar, o edifício pode começar a ruir.
A estratégia americana, então, depende não apenas de armas e tarifação, mas de ideologia, influência e controle indireto de narrativas políticas.
O bolsonarismo, nesse cenário, não é apenas um fenômeno local — é uma peça geopolítica global que ainda serve à permanência do dólar como centro do mundo.
Cássio Faeddo é Mestre em Direito e MBA em Relações Internacionais pela FGV-SP
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