29 de março de 2024

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O gênero do racismo no STF

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Por Ricardo Toledo Santos Filho

 

Acintosa, discriminatória, humilhante, a expressão “negrinha nojenta, ignorante e atrevida” é racista? Com a tecnicalidade das grandes questões jurídicas, fecundo debate teve lugar no Supremo Tribunal Federal (STF) quando o mais recente dos ministros, Kassio Nunes Marques, proferiu voto afirmando que, por já se achar tipificada como injúria racial, tal conduta não configura crime de racismo e, portanto, a pretensão punitiva a ela concernente não é imprescritível. Já o ministro Edson Fachin sustentou que a injúria racial é espécie criminal do gênero do racismo.

A questão é refinada pela ourivesaria do ordenamento jurídico. A Constituição estabelece, no inciso XLII do artigo 5º, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”. A Lei nº 7.716/89, que define os crimes relativos ao preconceito de raça ou de cor, tem incidência nos casos de ofensa coletiva a um grupo ou coletividade, ao se “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. São listadas 17 condutas delituosas, a exemplo de restrições genéricas, como impedir acesso a estabelecimentos comerciais ou de lazer, escolas, elevadores, empregos, etc., com penas de até cinco anos de reclusão. Em 1997, o crime de injúria, tipificado no artigo 140 do Código Penal, foi acrescido da elementar racista e recebeu o nomen juris de injúria racial, praticada com a necessária “utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A demarcar uma diferença, a pena máxima é mais branda, de três anos de reclusão.

Desde então, a doutrina penal construiu o entendimento de que racismo é ofensa a uma comunidade, um atentado à dignidade humana, e injúria racial, a um indivíduo, atingindo sua honra subjetiva. A clássica injúria simples, por sinal, tem uma das tipificações mais antigas no Direito Penal brasileiro, vigorando inclusive quando, infelizmente, a escravidão era legalizada. Entre nós, só recentemente foi estendida a ofensa ao espectro racial. Ao contrário da calúnia e difamação, a injúria não admite retratação para reparar ou minimizar o mal causado. Quando crime de natureza racial, a infração penal é inafiançável e imprescritível, consoante dispõe a nossa Constituição.

Assim entendeu o ministro Edson Fachin como relator de um habeas corpus em que uma mulher, alegando ter sido condenada fora do prazo estabelecido na Lei Penal, argumentava que a injúria racial seria afiançável e prescritível. Ela tinha 79 anos em 2012, quando, segundo a denúncia do Ministério Público, dirigiu a expressão que inicia este texto a uma frentista de posto de gasolina. Condenada a um ano de reclusão, recorreu a todas as instâncias, alegando que o crime prescrevera até por conta de sua idade. Ao julgar o caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a injúria racial é “mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão”.

Relator do feito no STF, Fachin concluiu que “excluir o crime de injúria racial do âmbito do mandado constitucional de criminalização por meras considerações formalistas desprovidas de substância, por uma leitura geográfica apartada da busca da compreensão do sentido e do alcance do mandado constitucional de criminalização é restringir-lhe indevidamente a aplicabilidade, negando-lhe vigência.” E arrematou: “Assim, o crime de injúria racial, porquanto espécie do gênero racismo, é imprescritível”.

Abrindo divergência, o ministro Nunes Marques argumentou que, “sem desconsiderar a gravidade do delito de injúria racial, entendo que não é possível tê-lo como crime de racismo, porquanto tutelam bens jurídicos distintos”. Em seu entendimento, se o delito de racismo é imprescritível, o de injúria racial não o é, e sua gravidade “não pode servir para que o Poder Judiciário amplie as hipóteses de imprescritibilidade previstas pelo legislador, nem altere o prazo previsto na lei penal”. Crimes “igualmente ou até mais graves”, como o feminicídio, estupro seguido de morte e tráfico de drogas, notou o ministro, prescrevem.

Suspenso após esses dois votos opostos, o julgamento, que está empatado, tem o potencial de agravar a punição a todos os crimes de racismo no Brasil – “uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o amanhã”, na opinião de Fachin. A comunidade jurídica permanece atenta ao caso, o qual não tem ainda previsão para a continuidade do julgamento na mais alta Corte de Justiça do país.

 

Ricardo Toledo Santos Filho é vice-presidente da OAB SP

(Os comentários são de responsabilidade do autor, e não correspondem à opinião do SB24Horas)
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