28 de março de 2024

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Microcefalia: professor analisa legislação sobre o aborto

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Questão seria de saúde pública, não de criminalização

Paulo César Borges, professor de direito penal da Unesp de Franca, explica, em entrevista para o Podcast e Portal Unesp, como uma mulher grávida, com diagnóstico de microcefalia, deve proceder, caso queira interromper a gravidez. Comenta, ainda, sobre os entendimentos do Supremo Tribunal Federal no caso de interrupção da gravidez para os casos de microcefalia e discute também a de políticfalta as efetivas do governo brasileiro para a erradicação da doença, entre outros temas.

Borges reforça que a complexidade em torno desta temática é resultado da criminalização do aborto no país. A gravidade da crise da microcefalia deve ser enfrentada como questão de saúde pública, com medidas imediatas e efetivas de política de saúde pública, nas áreas de assistência material, psicológica e jurídica, e não, jamais, como objeto de política de segurança pública.
Portal Unesp: Uma mulher grávida, que tenha feto com microcefalia, na atual legislação, pode abortar?

Paulo César Borges: O Código Penal brasileiro prevê expressamente a autorização para realização do aborto, no artigo 128, apenas nas hipóteses de: (a) risco para a vida da gestante, também denominado de aborto necessário; e, (b) gravidez resultante de violência sexual (estupro), também conhecido como aborto humanitário ou sentimental.
Na legislação penal brasileira não há previsão expressa de autorização da realização do aborto para os casos de feto com microcefalia e nem com outro tipo de anomalia, o que faz prevalecer, como regra, a proibição de caráter geral, quando não estiver associada à hipótese legal de riscos para a gestante. O Anteprojeto de Lei de Código Penal (PLS 236/2012), cuja tramitação de urgência foi extinta em 2015 (Requerimento 516, de 13/05/2015) e aguarda designação de relator desde outubro/15, prevê mais duas hipóteses de aborto autorizado, no artigo 128, incisos III e IV: a) comprovada anencefalia ou “quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extra-uterina, atestada por dois médicos”; e, b) até a décima segunda semana da gestação, quando a gestante quiser e for constatado por médico ou psicólogo que a gestante não tenha condições psicológicas de arcar com a maternidade.  Se o diagnóstico médico da microcefalia puder ocorrer apenas após a 16a. semana, a última hipótese não seria aplicada por referir-se à 12ª semana. Restará apenas a terceira hipótese de anomalias graves e incuráveis, atestada por dois médicos. Mas isto depende de ser votado e aprovado no Congresso.  A gestante que tiver diagnosticada a microcefalia e quiser interromper a gravidez terá que buscar autorização judicial, em que será feita a análise do caso concreto, apresentando a contextualização com a atual crise sanitária, e invocando a analogia com as hipóteses de aborto legal. Na comparação com o aborto necessário, há a questão da viabilidade fetal, e no aborto humanitário, há a circunstância de que se autoriza a interrupção da gravidez mesmo sem nenhuma anomalia fetal.

Sobre a questão do aborto nos casos de microcefalia, enquanto não for votado o ante-projeto do código penal que está em tramitação no Senado, como o judiciário está conduzindo esta questão no Brasil?

Borges: Há mobilizações sociais de diferentes matizes que contrapõem o “direito de escolha da gestante”, isto é, autodeterminação para exercício da sua Liberdade sexual e reprodutiva, saúde e dignidade – destacando importantes questões de gênero e até de andronormativismo – ao “direito à vida do feto”, sem discriminação. Refletem a questão jurídica da contraposição de direitos constitucionais da gestante e do feto, que a doutrina chega a fundamentar até no exercício regular de um direito constitucional, ainda que com o sacrifício de outro direito também previsto constitucionalmente. A complexidade da temática indica que quaisquer das possibilidades trará sequelas e perdas permanentes, para quaisquer das subjetividades contempladas no caso concreto. Antes de tudo, a gestante não pode ser compelida à sua realização, mas a sua vontade livre e consciente deve ser o pressuposto para o início de qualquer análise da realização da interrupção da gravidez, que alguns autores chamam de antecipação terapêutica do parto, para afastar o estigma atribuído ao termo aborto.  A exemplo da anencefalia e de outras anomalias que tornam a vida extra-uterina inviável, em que o Poder Judiciário brasileiro vem autorizando a realização do aborto de indicação eugênica, por aplicação analógica do artigo 128, inciso II, do atual Código Penal (aborto humanitário ou sentimental), com fundamento na ausência de regulamentação legal, por força do artigo 4o., da Lei de Introdução ao Código Civil (Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia…), nos casos em que a gestante optar pela interrupção da gravidez por microcefalia, deverá analisar, também, sob esta perspectiva, mas caso a caso, notadamente em razão de que a microcefalia, como regra, não é letal, e admite diferentes níveis de desvio padrão. Em pesquisa realizada, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, não foi encontrado nenhum pedido de realização de aborto por indicação eugênica referente à microcefalia, até o momento.

A falta de políticas efetivas do governo brasileiro para a erradicação da doença pode ser justificativas para que estas mulheres realizem o aborto?

Borges: Realmente, a falta de políticas públicas efetivas é que contribuiu para a pandemia que se constata no momento. É tão verdadeiro que, em simples pesquisa no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, utilizando-se o termo “direito à saude”, referentes a processos em que as pessoas buscam a sua efetivação por falta de obtenção de atendimento adequado, retorna 73.509 acórdãos! No Superior Tribunal de Justiça, a mesma pesquisa apresenta 299 acórdãos e, no Supremo Tribunal Federal, são 810 acórdãos. Alegam-se, por vezes, que está ocorrendo a judicialização da saúde, mas isto é efeito da falta de implementação de políticas públicas efetivas. Em relação especificamente à “microcefalia”, no TJSP, são 108 acórdãos; no S.T.J, são 15 decisões monocráticas; e, no S.T.F, não há nenhuma decisão específica até o momento. A falta de erradicação da doença, por si só, não autorizará a interrupção da gravidez, embora seja relevante na contextualização do caso que for apresentado ao Judiciário. A análise que preponderá será acerca do grau de comprometimento do feto e da viabilidade da sua vida extra-uterina. A análise será sempre caso a caso. A etiologia da microcefalia é variada e a Medicina será imprescindível para a decisão final. Por exemplo: existem casos em que a criança nasceu com Síndrome Alcoólica Fetal (abuso de álcool durante a gestação), microcefalia, distúrbio de aprendizado, hiperatividade e retardo mental de grau leve/moderado. Se fosse realizada a interrupção da sua gestão, apenas com o diagnóstico da microcefalia, seria hipótese de aborto tipicamente eugênico, e criminoso, ou hipótese de interrupção terapêutica, por analogia ao aborto ético/humanitário? É essa a complexidade da temática, enquanto o aborto não vier a ser descriminalizado — e o anteprojeto mantém a incriminação — e forem estabelecidas apenas algumas hipóteses de autorização legal, como ocorre atualmente.

Qual a sua opinião para o entendimento do STF sobre a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos aplicada a casos de microcefalia?

Borges: Exceto pelo aspecto de eventual entendimento concernente à inexigibilidade de conduta diversa, as hipóteses são distintas, ao menos em tese.  O debate nacional sobre os casos de anencéfalos culminou com audiências públicas e uma considerável produção científica na temática, pondo em destaque a contraposição de direitos constitucionais da gestante (autodeterminação, liberdade sexual e reprodutiva, direito à intimidade, à saúde e ao planejamento familiar livre), que decidia interromper a gravidez – que, se fosse a termo, traria um natimorto – e direitos constitucionais do embrião/feto (direito à vida intra-uterina, sem discriminação de qualquer natureza), concernentes à proteção inclusive internacional dos direitos do nascituro. Diversas teses foram sustentadas, chegando-se até a ser indicada a Lei de Transplante de Órgãos, que define o momento da morte, e que coincidiria com a situação do anencéfalo, mas o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que, quando a gestante decide realizar a interrupção, no caso do anencéfalo, seria o caso em que, juridicamente, estaria caracterizada uma situação de inexigibilidade de conduta diversa, excluindo o juízo de reprovação e, portanto, descaracterizando o crime de aborto. Até o julgamento da ADPF 54, o Judiciário brasileiro sempre se pautou pela analogia com o aborto humanitário. O debate sobre o aborto ressurge neste momento, em decorrência de diversos fatores:  pandemia da Zika;  ineficiência de medidas sanitárias a curto prazo, assim considerado o período de 9 nove meses, que corresponderiam a uma gestação; proliferação de casos de contaminação de gestantes, com a confirmação do diagnóstico da microcefalia em 508 casos, em Boletim do Ministério da Saúde, permanecendo 3.935 casos sob investigação, relativos a 2015/2016; transmissão do vírus da Zika por meio do mosquito Aedes Aegypti, e também pelo contato com sangue humano, semen e saliva; complexidade ainda maior, na medida em que a microcefalia apresenta diferenças consideráveis em relação à anencefalia. Enquanto a anencefalia caracteriza-se pela má-formação do tubo neural, com ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, com baixa expectativa de vida extra-uterina, e dignóstico inequívoco da deformidade, a partir da 12a. semana de gestação; a microcefalia implica em dificuldades cognitivas, motoras e não é letal como regra, sendo possível seu diagnóstico a partir da 16a. semana de gestação, através da circunferência cefálica (CC) multiplicada pela idade gestacional, resultando em índice menor que o de dois desvios padrões (2DP). A microcefalia é considerada severa se inferior a três desvios padrões (3DP) e há casos piores. O STF demorou de 17/06/2004, quando houve a distribuição da ADPF 54, até 12/04/2012, para o julgamento final, isto é, oito anos, em relação à anencefalia, que entendeu não caracterizar crime, por inexigibilidade de conduta diversa. Não se poderia esperar nova manifestação do STF em relação especificamente à microcefalia, por quase uma década, embora um posicionamento da corte uniformizaria as decisões das instâncias inferiores. Neste sentido, sob a perspectiva da vida intra-uterina, será melhor a construção jurisprudencial dos demais tribunais brasileiros, na análise dos casos individuais, aplicando, ou não, a analogia para as hipóteses de anomalia fetal, dentre elas a microcefalia, quando houver comprometimento da viabilidade da vida extra-uterina, com seus efeitos sobre a sáude da gestante, diante das distinções e consequências dessas anomalias: a anencefalia é letal; a microcefalia não é letal, como regra.
Por outro lado, do prisma dos direitos fundamentais e da dignidade da mulher, da liberdade sexual e reprodutiva, muito importante, ao lado da segurança jurídica, é que não seja duplamente vitimizada: 1)  contaminação por falta de política pública eficiente e/ou socialmente vulnerável; e, 2) incriminação, se optar pela realização do aborto clandestino ou não. A gravidade da crise da microcefalia deve ser enfrentada com medidas imediatas e efetivas de política de saúde pública, como questão de saúde pública, com assistência material, psicológica e jurídica plenas  e não, jamais, como objeto de política de segurança pública.

Agência UNESP
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