Prática atinge nove em cada dez brasileiros e pode atrasar identificação de patologias graves
Pesquisa realizada pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) revela que nove em cada dez brasileiros se automedicam. O hábito, aparentemente inofensivo, esconde riscos para a saúde pública, principalmente por mascarar sinais que poderiam levar ao diagnóstico precoce de doenças sérias e ainda causar efeitos colaterais.
Outro levantamento, intitulado “Mais dado, mais saúde”, conduzido pelas organizações Vital Strategies e Umane, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), reforçam a dimensão do problema: 35,1% da população pratica automedicação regularmente, enquanto 34,6% evita buscar ajuda médica por acreditar que seus problemas de saúde não justificam uma consulta.
Esses comportamentos preocupam especialistas, que alertam para os riscos de postergar diagnósticos, já que há patologias graves que apresentam sintomas iniciais semelhantes a questões menos graves. O clínico geral Marcelo Bechara, em entrevista à imprensa, observa que a automedicação diária pode camuflar uma condição mais grave. Para ele, aliviar apenas a dor significa tratar a consequência, não a causa.
Dor abdominal persistente e mudanças no hábito intestinal são sintomas do câncer de cólon e reto, conforme informações do Ministério da Saúde. Quando ignorados, podem adiar o tratamento precoce, fundamental para aumentar as chances de cura e a qualidade de vida do paciente durante o tratamento da doença, como pondera o Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Outro problema da automedicação está relacionado ao desconhecimento das propriedades dos remédios usados. “Alguns medicamentos podem causar reações alérgicas ou interagir negativamente com outros. Além disso, a falta de conhecimento sobre a dosagem exata pode levar à subdosagem ou overdose”, acrescenta a coordenadora estadual da Assistência Farmacêutica da Secretaria de Estado da Saúde (SES) em Sergipe, Juliana Santos, conforme informações do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Receitas obtidas pela internet e diagnósticos por IA preocupam especialistas
A facilidade de acesso à informação on-line intensifica o problema. De acordo com o estudo do ICTQ, 68% das pessoas conseguem obter orientações sobre doenças e tratamentos pela internet, muitas vezes, chegando a conseguir medicamentos que necessitam de receita médica.
Bechara confirma essa tendência, apontando que “os pacientes pesquisam em buscadores com frequência” e que, com o advento da Inteligência Artificial (IA), a situação se complica ainda mais. “Muitas vezes, o paciente chega com um diagnóstico feito por ele mesmo e está totalmente errado. Esses programas não sabem interpretar um exame associado ao quadro clínico.”
Há, ainda, o agravante de pacientes que evitam ir ao médico ou aos postos de saúde. Entre os homens, isso é mais comum, conforme exemplificado por estudos científicos brasileiros e internacionais. Um deles, de 2024, realizado com base nos dados da plataforma “dr.consulta”, revela que das consultas urológicas e ginecológicas realizadas, apenas 19% correspondem a atendimentos urológicos procurados por homens, enquanto 81% são consultas ginecológicas realizadas por mulheres.
A relutância em procurar atendimento médico, muitas vezes, leva os homens a práticas de automedicação. Aqueles que apresentam sintomas urinários, por exemplo, podem recorrer a anti-inflamatórios ou analgésicos sem considerar a possibilidade de atrasarem o diagnóstico do câncer de próstata.
Da mesma forma que uma doença grave pode inicialmente passar despercebida, esse comportamento por parte dos pacientes pode ser perigoso quando assumem um diagnóstico errado e já chegam aos consultórios e hospitais pedindo tratamentos específicos, como diferentes tipos de quimioterapia – tudo isso com base em informações inadequadas ou, em alguns casos de IA, totalmente inventadas.
Analgésicos e antibióticos lideram lista de remédios consumidos sem receita
Juliana Santos afirma que analgésicos, anti-inflamatórios, antibióticos, relaxantes musculares e ansiolíticos estão entre os medicamentos mais utilizados sem prescrição médica. O uso indiscriminado de antibióticos contribui para a resistência bacteriana, tornando futuros tratamentos menos eficazes e representando um grande desafio para o próprio sistema de saúde pública, visto que o aumento da demanda por atendimentos de emergência e internações impacta toda a distribuição de espaço e atenção aos pacientes.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que mais de 50% de todas as medicações são prescritas, dispensadas ou vendidas de forma inadequada, enquanto metade dos pacientes não utiliza os remédios corretamente.
Bechara identifica questões estruturais que contribuem para a automedicação. A falta de fiscalização de receitas e o comércio clandestino de remédios também representam um desafio. A vasta oferta da indústria farmacêutica, associada a informações por vezes incorretas disponíveis na internet e balcões de farmácias que se distanciam do conceito de estabelecimento de saúde, contribuem para perpetuar essa realidade no país.
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