Havia uma vila cercada por altos muros, onde os moradores viviam confortavelmente, mas em constante vigilância. Dentro da vila, todos conheciam as regras: certas perguntas não deveriam ser feitas, certos fatos não deveriam ser lembrados. Para manter a aparência de paz, criaram versões convenientes da história e repetiam-nas como se fossem verdades absolutas.
Entre eles vivia um homem simples, que não gritava nem acusava. Apenas dizia o que via. Quando perguntado sobre rachaduras nos muros, ele apontava para as fissuras visíveis. Quando falavam da segurança da vila, ele lembrava dos perigos ignorados. Por isso, passou a ser evitado. Diziam que ele causava divisão, quando, na verdade, apenas se recusava a mentir.
Os líderes da vila reuniam-se frequentemente, criando justificativas, hipóteses e discursos bem ensaiados para manter todos tranquilos. Decidiram, então, afastar aquele homem, acreditando que, eliminando a voz incômoda, eliminariam também o problema.
Com o tempo, os muros começaram a ruir. O medo se espalhou, e muitos perceberam que haviam sido prisioneiros não da verdade, mas da mentira que aceitaram para não enfrentar a realidade. Alguns entenderam tarde demais que rejeitar quem fala a verdade não livra da consequência dos erros — apenas adia o confronto.
E então compreenderam que a verdade nunca foi a inimiga. Ela sempre esteve ali, visível, esperando ser aceita. Porque somente ao conhecê-la é que alguém pode, de fato, ser liberto.
Quando o silêncio é tratado como virtude e a mentira como estratégia de convivência, a liberdade se torna apenas uma ilusão coletiva
A parábola da vila cercada por muros altos não fala apenas de um lugar fictício. Ela descreve, com precisão desconfortável, comportamentos recorrentes em famílias, instituições, grupos sociais e até na política. Sempre que a verdade ameaça a estabilidade artificial construída sobre conveniências, surge a tentação de calar quem aponta as rachaduras — como se eliminar a voz fosse suficiente para eliminar o problema.
Vivemos tempos em que muitos preferem ritos a responsabilidades. Reuniões se multiplicam, discursos são cuidadosamente ensaiados e hipóteses são criadas para justificar o injustificável. Tudo para evitar o enfrentamento direto daquilo que está evidente. A verdade, quando não convém, passa a ser tratada como agressão. Quem a profere é rotulado como causador de conflitos, quando, na realidade, apenas se recusa a participar da encenação.
A parábola deixa claro: não é a verdade que aprisiona, mas a negação dela. Os muros da vila não protegiam; escondiam a fragilidade. A exclusão daquele que dizia o óbvio não fortaleceu a comunidade, apenas adiou o colapso. E esse é um ponto essencial: afastar quem fala a verdade pode gerar um alívio momentâneo, mas cobra um preço alto no futuro.
Há também um aspecto moral profundo nessa narrativa. Rejeitar a verdade, especialmente quando ela é clara e acessível a todos, não é um ato neutro. É uma escolha. E escolhas têm consequências. Não reconhecer erros, não reparar injustiças e não admitir fatos transforma o silêncio em cumplicidade. Nesse contexto, excluir quem propaga a verdade não é autoproteção — é falta de coragem ética.
A frase bíblica que encerra a reflexão — “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” — não promete conforto imediato. A verdade liberta porque confronta, expõe e exige mudança. Ela derruba muros, desfaz versões convenientes e obriga cada um a assumir responsabilidades. É justamente por isso que tantos a temem.
No fim, a parábola nos lembra que não há liberdade possível onde a mentira é mantida como regra de convivência. A verdade pode incomodar, mas é o único caminho que evita que se perceba, tarde demais, que o problema nunca foi quem falou — e sim quem preferiu não ouvir.
Dennis Moraes
Jornalista



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