28 de março de 2024

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Cantareira: terra, pedras… E água?

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por Ana Lúcia Maestrello de Micheli presidente da Oscip IEMA

“Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinhá Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinhá Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava convicção; como Sinhá Vitória tinha dúvidas, Fabiano exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo (…). Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá, na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.

E andavam para o Sul, metidos naquele sonho.” (Vidas Secas, Graciliano Ramos)

 

Visitar o Sistema Cantareira pareceu-me uma jornada como a de Fabiano: precisei imaginar que havia água suficiente para nossa sobrevivência. Mas não. Foi assustador, temeroso: muita terra, pedras e um volume morto. Sim, morto, que arrastará consigo outras mortes, caso medidas extremas não sejam tomadas.

A minha jornada até lá começou no dia anterior, numa conversa com meus filhos, em que disse a eles “mamãe, amanhã, visitará o Sistema Cantareira, local importantíssimo para nossa sobrevivência, pois é de lá que recebemos a água que sai das nossas torneiras. Preciso ir para fazer um estudo do meio, como vocês fazem em excursões com a escola”.

Meio, que meio? Há meios de salvação? O Meio Ambiente poderá ser harmonizado pelo homem? Haverá água para meus filhos? Pensei comigo. Olhei profundamente para minhas crianças e a angústia tomou conta da minha existência. O que será da vida deles sem água, por volta de 2025 (ou antes)?

O dia da visita ao Cantareira chegou. Embarcamos no ônibus. Senti-me realmente numa excursão escolar. Voltei no tempo, pois, quando jovem, essas viagens eram o ponto alto de estudo para mim. Porém, essa não fora nada divertida, não comemorei, não fiquei com a turma do fundão, não cantei com ela.

Parecia-me mais uma ida a um funeral. Sim, um funeral de pessoas amadas, de pessoas desconhecidas, de todas as vidas humanas, aquática, terrestre, que dependem de água. Novamente, a angústia gelou-me. Eu já sabia o que veria – fato.

A minha impotência humana, limitada por não ter muito o que fazer, foi o maior peso quando desci do ônibus e deparei-me com o tal Volume Morto – agora chamado de Reserva Técnica pelos especialistas da companhia responsável pelo abastecimento. Outro sentimento também me atormentou: o de negligência educacional. A minha geração nunca fora avisada na escola que um dia a água poderia acabar! Por que não me ensinaram como conservar esse recurso tão precioso? Por que desde que eu era bebê não fui instruída com Educação Ambiental?

Meu Deus! Voltei ao contexto atual e, novamente, mais questionamentos apareceram: será que as pessoas estão formadas o suficiente para a preservação da água? Elas realmente têm conhecimento profundo de como conservá-la? O que os gestores públicos estão fazendo para eliminar a burocracia política e facilitar esse atendimento emergencial de recuperação das nascentes? Ou será que todos nós estamos sendo iludidos como o Fabiano, em que o delírio, a certo momento, é a única escapatória para essa dura realidade que temos enfrentado?

A pergunta final que deixo no ar é: vamos sobreviver?

Quando estava me despedindo do local fúnebre, só para completar o cenário, um urubu pousou no ponto em que estávamos da Represa Jaguari para chancelar minhas angústias, trazendo aquela sensação de mau agouro. Pensei: deveria haver vida em abundância ali, com água, muita água, e não morte. Minha morte? Morte dos meus filhos? Morte dos brasileiros, dos animais, das plantas, de tudo?

Fabiano tinha como sonhar com o Sul como uma forma de esperança. E nós, sonharemos com que região? Ou melhor, teremos como sonhar?

 

Nota: à convite do Consórcio PCJ (órgão consultivo das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí), a presidente da Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) IEMA (Instituto de Educação e Meio Ambiente) visitou as barragens das Represas Jaguari e Jacareí, que compõem o Sistema Cantareira, na última sexta-feira (21). Cerca 50 pessoas participaram da visita técnica, a maioria composta por educadores socioambientais das regiões das bacias.

(Os comentários são de responsabilidade do autor, e não correspondem à opinião do SB24Horas)
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